Efetivamente nã o escolhera a solidã o, quando a pressentia arranjava um jeito de despachá-la, estendia a agenda, esticava o trabalho, dormia pouco.
No leito vazio o cansaç o era tanto que nem boa noite lhe dava, robotizara- se, gradativamente vestiu a armadura da indiferenç a.
Desconhecia a imagem refletida no espelho, o coraçã o se acostumara aos expedientes adotados.
Ao primeiro sinal de carê ncia – trabalho e mais trabalho, distante das emoçõ es, olhar ressequido, lá grimas ausentes.
Vez ou outra transitava veloz nas lembranç as de um tempo em que sentiu no peito o palpitar do afeto.
Bobagem – dizia para si mesmo.
Quando a alma timidamente ousava despertar aplicava- lhe o soní fero das desculpas.
Aromas, cores, gostos, movimentos, melodias, sinfonias, afeto, ternura, encanto...
Riscara estas palavras do dicioná rio, literalmente carregava as baterias apenas para seguir a rotina..
Gradativamente os amigos se foram.
Efetivamente nã o escolhera a solidã o.
Seguia robó tico, vida quadrada desprovida de emoçã o.
Compromissos regiamente anotados impediam o registro do tempo fugaz.
Amealhou altas somas, acreditando que absolutamente tudo dependeria do vil metal.
Nos fragmentos de lucidez planejava encontrar um amor, construir famí lia, ter um tempo para si.
Entretanto, rapidamente sufocava os planos, pois precisava ser á gil para despachar a tal solidã o.
No í ntimo achava tudo uma grande bobagem.
A armadura mostrou- se frá gil quando um mal sú bito tirou- o do trabalho.
Ordem mé dica – repouso.
Um mê s de afastamento, consultas e mais consultas, medicamentos, exames.
Na segunda semana ficou sabendo que a empresa contratara algué m para substituí-lo.
O problema renal diagnosticado obrigava- o a ficar horas em absoluto repouso.
Pela primeira vez percebera o inadiá vel encontro consigo mesmo.
A imagem no espelho...
Quem era?
Um desconhecido!
Procurou a agenda, nã o a de compromissos, estava impossibilitado de trabalhar.
Queria a agenda telefô nica amarelada pelo tempo, pá ginas semi coladas ante ao desuso.
Desconhecia os vizinhos de condomí nio, embora residisse há mais de duas dé cadas no local.
Admitiu pela primeira vez que precisava do pró ximo.
Deixou- se levar pela solidã o - aquela que se esquivara a vida toda.
Parentes distantes, amigos perdidos, ignorado no trabalho...
Precisava de alento, solidariedade, ombro amigo.
As altas somas nã o lhe socorreriam.
Encontrou enfim a agenda avariada, pá ginas desordenadas, í ndice confuso.
Alguns nú meros com os prefixos alterados, outros mudaram os assinantes.
Lembrou- se de Eliza, colega dos tempos de faculdade.
Acendeu a opaca chama da esperanç a.
Ligou...
- Eliza, indagou a voz do outro lado da linha...
- Sim Eliza, diz pra ela que é o Eduardo, seu colega de turma do curso de Fí sica.
Um momento, por favor – disse a interlocutora...
Diante da demora desligou o telefone para em seguida tentar falar com a tal Eliza.
- Por favor, disse novamente, quero falar com a Eliza, a senhora é a mã e dela?
Imagino que Eliza deva estar trabalhando, sem problemas, poderia, por favor, anotar o nú mero de meu telefone?
Diz pra ela que é o Eduardo, seu colega de turma do curso de Fí sica, afoito nã o dava espaç o para a interlocutora.
- Sr. Eduardo....
A senhora anotou meu nú mero?
Preciso muito falar com ela, cursamos a faculdade, sempre participamos dos mesmos grupos de estudo, é urgente, a Eliza é a minha melhor amiga, continuou, nã o me leve a mal senhora, mais preciso falar com ela!
Eduardo aos poucos caiu em si diante do longo silê ncio.
- Sr. Eduardo, o senhor procura pela Dra. Elisa Antero?
Sim, Eliza Antero, a Senhora é a mã e dela?
- Nã o Sr. Eduardo, meu nome é Mariana, sou a filha caç ula de sua amiga.
- Minha mã e Eliza faleceu há dezessete anos...
Atô nito sussurrou um muito obrigado para banhar- se no pranto contido.
Paredes cinza, horas mortas, vida amorfa.
Recorreu para à s lembranç as, viu- se na mais tenra infâ ncia.
- Os tesouros materiais nã o nos socorrem.
Maria Eugê nia, sua a saudosa avó materna costumava dizer isso.
Eduardo lembrou- se da mã e ao pé do fogã o de lenha, do cheiro do pã o quente, do mugir do gado, o canto da passarada.
Os irmã os, os brinquedos improvisados, o banho no ribeirã o, a pesca de lambaris, os passeios na quermesse, a escola de madeira, a bondosa professora...
Os amigos...
Pode ver nitidamente o pai chegar da lida vestido com a suada camisa xadrez, calç a remendada, botinas embarreadas na terra vermelha dos cafezais em flor...
O fogo das lamparinas, a paineira florida, o colchã o de palha, a velha colcha de retalhos, o pomar, o engenho, a famí lia reunida, os folguedos, a cantoria, a viola, a sanfona, as rezas...
Com os olhos rasos d’á gua, ensaiou a prece, Pai nosso que estais no cé u...
Efetivamente nã o escolhera a solidã o.
Precisava ter pé s no chã o, como tratamento mé dico e repouso logo recobraria a saú de.
- Sú bito lembrou- se da senhora que servia o café na empresa onde era Diretor, precisava de ajuda.
A tal senhora trabalhava meio perí odo na empresa, por certo poderia passar algumas horas prestando- lhe serviç os – imaginou, ligou para a secretá ria.
- Sandra, boa tarde, como chama aquela senhora que serve café?
- Dona Jandira.
A pobre senhora tremia todas as vezes que entrava na sala do imponente diretor, estava na empresa havia oito anos, Eduardo nã o sabia sabi ao seu nome!
- Sandra, o mé dico me prescreveu repouso, será que a Dona Jandira pode vir aqui em casa dar- me uma mã o por estes estes dias?
- Falarei com ela Dr. Eduardo.
Chame- a para conversar explica a situaçã o, o imprevisto...
Dona Jandira para a maioria dos funcioná rios era a simpá tica senhora sempre de bom humor, aAo escutar o pedido de Sandra ficou atô nita.
- Mais Sandra, como vou à casa do Dr. Eduardo, ele nem me cumprimenta, tenho o maior medo dele!
Apó s muita conversa ai final concordou, na manhã seguinte lá estava na portaria do pré dio se identificando para subir, os porteiros ficaram curiosos, Dr. Eduardo jamais recebera visitas, pediram os documentos, apó s alguns minutos confirmaram o chamada.
- A Senhora pode ir pelo elevador dos fundos – o de serviç o.Mal passara da portaria recebeu o novo comunicado do porteiro, senhora, O Dr. Eduardo pediu para a senhora subir pelo elevador social.
Subitamente debilitado ele nã o via a hora de receber a visita, precisava mais do que ajuda, precisava de gente, o repouso compulsó rio, a fragilidade fí sica e o repensar repentino da vida despertaram valores de há muito sufocados.
Recebeu a visita desfigurado, pijamas, barba por fazer, chinelos, nem de longe lembrava o imponente executivo, Dona Jandira levou um susto.
- A Sandra disse que estou precisando dos serviç os da senhora?
Sim senhor – disse Jandira sem erguer os olhos.
- O que tenho que fazer Dr. Eduardo?
- Como é mesmo seu nome senhora?
Dona Jandira – à s suas ordens.
Casa escura, desarrumada, geladeira vazia, sobre o balcã o da cozinha uma carteira semiaberta, Dona Jandira nunca vira tanto dinheiro.
No escritó rio quatro computadores – ainda ligados, na ú nica parede vazia um quadro branco repleto de anotaçõ es.
Sobre a mesa pilhas de papeis desarrumados, misturados com dezenas de envelopes contendo correspondê ncias bancá rias.
Na pia da cozinha restos de comida comprada pronta, nos porta- retratos apenas diplomas – muitos deles!
- Dona Jandira, falou docilmente com a visita, estou de repouso mé dico, preciso que me faç a algumas compras.
Totalmente diferente do onipotente emendou...
A Senhora veja o que falta na dispensa, abra a carteira que está sobre o balcã o, pegue o dinheiro que for preciso vai até o supermercado compre os ingredientes para fazer o almoç o.
Sem entender tanta amabilidade, pois aquela pessoa carente em nada lembrava o alto Jandira executivo, obedeceu.
Saiu à s compras, quando retornou passava das onze da manhã.
Eduardo pediu- lhe que preparasse uma comida simples – arroz, feijã o, ovo frito, bife, salada de tomates.
Jandira aceitou de bom grado, adorava cozinhar e mesmo entanto desambientada foi para o fogã o.
Mas na moderna cozinha eram tantos equipamentos que a pobre mulher sequer conseguia ligar o fogã o, tudo automatizado!
Passava do meio dia quando o almoç o ficou pronto, Jandira estendeu sobre um canto da imensa mesa de jantar a primeira toalha que encontrou, apoiou as panelas quentes sobre pratos para nã o danificar, e o patrã o acostumado a serviç os esmerados com porcelanas, pratas e cristais combinados nos pequenos detalhes viu- se diante das panelas sobre a mesa...
- Está pronto Sr. Eduardo, pode vir almoç ar, Quer que eu prepare uma limonada?
A á gua francesa foi entã o substituí da pelo suco com gosto de infâ ncia...
- Dona Jandira, a senhora é minha convidada, pegue mais um prato e os talheres, sente- se, por favor, almoce comigo, faz muito tempo que faç o as refeiçõ es sozinho.
Jandira atendeu, conversaram pouco. Eduardo repetiu o prato.
Ainda sem entender bem o que estava acontecendo sentia a comida descer apertando a garganta.
Ao terminar, a refeiçã o Eduardo pediu que ficasse pois iria lhe servir o café.
Surpresa aceitou a bebida quente, em seguida adotou a mesma postura que praticava na empresa, abaixou a cabeç a, desajeitada e surpresa ao mesmo tempo tomou o café em silê ncio.
Dona Jandira passou a ir todos os dias para fazer os afazeres domé sticos.
Na segunda semana de tratamento Eduardo soube que seriam necessá rios mais trinta dias de afastamento.
Tempo precioso para curar mais que a maté ria, para repensar valores e promover a cura da alma.
Assistido por Dona Jandira Eduardo percebeu o valor inestimá vel da amizade, a importâ ncia em se cultivar os amigos, a insignificâ ncia do ter quando o ser se revela abandonado.
Nas prateleiras do ser os bens mais preciosos jamais estiveram à venda – o afeto, a ternura, o carinho, a solidariedade, o amor, o respeito e a simplicidade.
Vida apressada, desconstruçã o acelerado do eu robó tico, Eduardo investiu tanto no ter, amealhou fortuna, status, poder, enquanto que o ser adormecerá até a eclosã o das doenç as.
Esvaziados sentimentos mostraram- se de vez, para que o poder, o ter?
Para que? Perguntava- se na impositiva reflexã o.
Eduardo se entregara para o trabalho, para a sufocante agenda sempre à serviç o de terceiros., agora percebia que a prioridade seria a sua vida.
Nã o para ser nababescamente vivida, nã o era isso, mas sim a vida para compartilhar, para viver com simplicidade, famí lia, amigos, amor, solidariedade...
- Dona Jandira, a senhora conseguiria me dizer o que é felicidade, certa manhã indagou de surpresa para a fiel escudeira.
- Assim Dr. Eduardo sem pensar, responder e pronto?
- Sim, Dona Jandira.
- Ah Dr. Eduardo, felicidade pra mim é poder ajudar o senhor, é estar aqui enquanto o senhor recobra a sua saú de, eu aprendi com minha famí lia que encontramos a felicidade toda vez que nos colocamos à disposiçã o daqueles que de nó s necessitam.
Eduardo olhava atô nito, pensava como era possí vel uma pessoa que
trabalhou com ele no mesmo ambiente por longos anos, de quem sequer o nome se mostrou de repente solidá ria, mentalmente agradeceu a Deus pela enfermidade.
Nã o fosse a doenç a jamais teria a oportunidade de repensar a sua vida, do coraçã o deixou brotar um muito obrigado acompanhado de duas grossas lá grimas.
Aos poucos recuperou a saú de – especialmente a da alma, prioridades e agenda refeitas.
A doenç a, as perdas assumidas, convivê ncia com a simpá tica senhora, as lembranç as da origem, a descoberta da simplicidade, o poder da prece
e a fé inabalá vel em Deus mudaram por completo sua postura.
Mais que isso – percebera a perenidade da vida, a insignificâ ncia do ter quando se abre mã o do ser.
Nã o precisaria mais do trabalho exaustivo, a vida pedia pressa, a solidariedade també m.
Quando da alta mé dica iniciou a concretizaçã o dos projetos recé m-elaborados para uma vida harmonizada com os preceitos divinos.
Trabalho voluntá rio, tornou- se assí duo participante em vá rias instituiçõ es, decidiu aplicar parte das economias em prol dos semelhantes.
Felicidade, encontrara a felicidade imensurá vel no ser ú til ao pró ximo, no compartilhar, no estender as mã os!
À Dona Jandira coube indicar algumas comunidades para receber os bens compartilhados e o trabalho voluntá rio que Eduardo fazia desde entã o com um largo sorriso no rosto.
Efetivamente nã o escolhera a solidã o...